Em um dos restaurantes mais frequentados por dirigentes do Flamengo, na orla da Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, o técnico Domènec Torrent se acomoda e pede um cherne no sal grosso com risoto de limão. O peixe era o preferido do antecessor, Jorge Jesus, que optava por legumes como acompanhamento. A adaptação do prato, de certa forma, é quase um sentido figurado dos primeiros meses do espanhol no Brasil: o desafio de seguir a receita de sucesso do português, mas sem deixar de imprimir seu estilo. Hoje, ele comanda o time contra o Corinthians, às 16h, em São Paulo.

A paixão por peixe vem da infância. Nascido em Santa Coloma de Farners, em Girona, na Catalunha, Dome gostava de pescar. Foi atleta de futebol, um meia canhoto, mas se aposentou em 1989, com apenas 27 anos, quando iniciou os estudos para virar treinador. Como técnico, passou por clubes menores, antes de se tornar auxiliar de Pep Guardiola por uma década.

— É um cara bem descontraído, não exige muita coisa. É muito simples. Diferente de Jorge Jesus, que era mais exigente. Ele é bem mais tranquilo — conta um do garçom, que costuma servir o espanhol.

Não foi apenas o prato de Jesus que Dome adaptou. No CT do Flamengo, a sala do treinador agora fica de frente para os campos. Dome não quer perder nada caso um dos auxiliares estejam dando o treino. Saiu o mister, entrou o espanhol com habilidade de gerenciar e escutar, características que o fizeram ter o comando questionado no início.

Sem mão de ferro e voz imperativa, o técnico teve dificuldade para ganhar respeito. Em momentos turbulentos, foi escorado pelo vice de futebol, Marcos Braz, como na coletiva após a goleada por 5 a 0 para o Independiente del Valle, no Equador. E deixou claro que não iria mudar seu estilo, nem se mostrar duro diante das câmeras. Para Dome, tudo passa por tomar decisões conjuntas dentro do vestiário e não deixar que ninguém seja mais importante que o grupo. Na avaliação pessoal, não é necessário mostrar isso publicamente.

ESP Rio de Janeiro (RJ) 10/10/2020 – Campeonato Brasileiro 2020 – Jogo entre Vasco x Flamengo em São Januário. Foto Alexandre Cassiano Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo

Desabafo no vestiário

No dia a dia do clube, o treinador apresenta suas ideias e dá espaço para o debate. Gosta de ouvir especialistas de cada área. Antes de implementar o rodízio, o técnico se atualizou sobre os desgastes dos atletas e o trabalho de recuperação. Seu preparador físico, Julian Giménez, chegou mais afoito para impor seus métodos, mas Dome logo percebeu que o trabalho no Brasil tem particularidades e recuou.

No entanto, se é preciso dar ordens, Torrent assume a responsabilidade. Se vê que deu errado, volta atrás e aceita outras soluções. Para os funcionários do Flamengo, deixa claro que não quer implementar seu jeito na marra, fazer terra arrasada. Nos diálogos, exalta que veio ao Brasil para ser campeão. E não por dinheiro, status ou turismo. “Não posso perder tempo”, repete.

No vestiário do Maracanã, após o jogo com o Goiás, em que a equipe conseguiu vitória nos acréscimos, Dome pediu a palavra na roda de jogadores e colocou para fora, em bom português:

— Foi difícil. Mas estou muito feliz de conseguir a vitória do jeito que foi — disse, com ênfase no “muito”.

A familiaridade com o novo idioma após aulas intensivas também contribuiu para deixá-lo mais solto. Todos bateram palmas, hoje mais adaptados ao estilo que aparenta insegurança para alguns. Diferentemente de Jesus à beira do campo, Dome sabe se impor e lidera com outras características.

Desde que chegou ao Flamengo, ele corre contra o tempo. Em sua baia no vestiário, costuma receber vídeos dos analistas sobre o próximo adversário. Não quis perder os primeiros dias procurando imóveis no Rio, optando pela hospedagem no próprio Centro de Treinamento. Há um mês, já alocado em uma casa, recebeu sua mulher, vinda da Espanha. Os dois filhos ficaram por lá. Até agora, só viu a praia de longe, pela janela do carro que o leva ao Ninho do Urubu. Ou da bicicleta que usa para pedalar na orla nas raras horas livres. É a opção que treinador tem usado para se “desconectar”.

A chegada ao Brasil em cima da hora não o fez se dar conta do calendário insano, contra o qual já falou abertamente. “Difícil imaginar como vocês conseguem trabalhar dessa forma”, desabafou ao técnico Enderson Moreira, do Goiás, na última semana.

— Dome é gentil, equilibrado, atencioso. Respeita muito os treinadores do Brasil. Bacana gente de fora ter essa humildade — contou Enderson, que interpretou a aproximação como uma forma de empatia, atrelada a uma angústia por não conseguir colocar alguns conceitos em prática.

x89986634_ESP-Rio-de-Janeiro-RJ-10-10-2020Campeonato-Brasileiro-2020Jogo-entre-Vasco-x-Flamengo.jpg.pagespeed.ic.fOc1fHOcDT A vida de Dome, do Flamengo, no Rio: um 'workaholic' que valoriza a simplicidade
Dome conversa muito com médico Márcio Tanure Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo

Conversas com Pep

Apesar do pouco tempo, até hoje as conversas com o técnico do Manchester City e ex-chefe, Pep Guardiola, são recorrentes ao telefone. O treinador acredita que saber escutar é uma habilidade necessária para a vida, no intuito de compreender o outro e criar uma conexão emocional com os jogadores. A relação de confiança pode demorar, mas se baseia em convencer o atleta com conhecimento e informações para ele poder evoluir. O técnico diz nos poucos treinos que não exigirá nada que eles não possam fazer. Com o tempo, todos já absorvem sesu conceitos. Se precisarcobrar alguém individualmente, chama no canto. Nada de exposição.

A correria impede que o Dome pai, o marido ou o amigo de Pep Guardiola apareça muito, e ele se queixa dessa pouca dedicação aos seus por causa do trabalho. Aos mais próximos, sempre valoriza a família e os amigos que conserva desde criança. Outros prazeres, como fazer um churrasco, conversar com os seus, rir, são o que deixam o treinador feliz e em paz.

Em momentos de maior convívio, como nas viagens com o time, Dome é mais introvertido que seus auxiliares. Especialmente Jordi Guerrero, apelidado de Guerra, muito querido pelos jogadores. Guerrero é o homem das bolas paradas e a voz que se escuta nos treinos. O analista Jordi Gris — chamado de “Cabelinho” — é mais discreto e se debruça em avaliações técnicas específicas pedidas pelo comandante. Sereno, o técnico faz de todo mundo um “auxiliar”. E começa a inspirar um comportamento mais cooperativo no Flamengo.

Vindo de empate com o Bragantino, o time está em terceiro, com 31 pontos, empatado com Atlético-MG e Internacional.