Esperamos que um dia o homem pare, antes de sua morte, e sejamos capazes de contar sua história com início, meio e fim. Os gênios não admitem essa hipótese e seguem inquietos até que um desfecho a eles seja imposto. Rogério Ceni, certamente um gênio sob o travessão, busca agora sê-lo com a prancheta nas mãos. Talvez nunca chegue lá, mas seu combustível é precisamente a jornada, agora pavimentada por um título brasileiro à frente do clube mais popular do país. Como numa retroalimentação, parece disposto a esclarecer que quanto maior o desafio, igual será sua ambição.

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Não se deve condenar o apetite. Ceni é um devorador, mas seu alimento não são as carnes e os grãos, e sim as vitórias e as taças. A carreira de jogador, com dezenas de conquistas de porte internacional, atestava isso. E mesmo a breve trajetória como técnico é capaz de ratificar a tese. Ainda assim, há quem condicione a manutenção do status de maior ídolo do São Paulo à supressão do inegociável apetite.

Tolice enorme é importar para o futebol os vícios do amor romântico, aquele que nos ensina a confundir carinho com posse. Nossos ídolos não nos pertencem. E mesmo que operássemos sob essa lógica, é seguro afirmar que Rogério Ceni não escreverá em lugar algum história mais bonita que a narrada no Morumbi.

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Primeiro porque nunca ficará duas décadas e meia no mesmo clube — e é preciso muito esforço para desgastar elo tão intrincado, como comprovam os casamentos e ao contrário do que sugerem os rancorosos. Também porque, por mais engenhoso e carismático que seja um treinador, jamais será o autor da magia — esta é uma obra dos jogadores. Por fim, Ceni parece consciente de que seu novo métier o colocará sempre sob a desconfiança e o risco do descarte após maus resultados.

Da perspectiva rubro-negra, também não se espera que o Ceni treinador do Flamengo tenha a mesma dimensão do Rogério ídolo do São Paulo. Não se exige nem que alcance a velocidade do meteoro Jorge Jesus. Em parte porque no Rio também se comunga os ideais do amor romântico, e Ceni será, de antemão, um são-paulino, ainda que jure não haver emoção igual à que se sente na Norte do Maracanã. A prova de que se trata de um vínculo de outra natureza é que, mesmo campeão, o ex-goleiro ainda está longe de ser abraçado pelos rubro-negros. Tampouco é prudente apostar grana alta que continuará no cargo.

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— A cada campeonato, cada título, você tem uma nova chance de escrever a História. Trabalhar em um clube como o Flamengo é realmente diferente na vida de um profissional — resume.

Como os gênios, e como os que nunca serão, Ceni tem o direito à inquietude; a pretensiosamente começar a carreira como treinador no clube em que passou de atleta a deus; a abandonar um trabalho bem-sucedido no Fortaleza para mergulhar no caos do Cruzeiro; a voltar ao Nordeste com um mea-culpa; e a deixar esse projeto novamente para assumir o melhor elenco do Brasil.

O motor de tudo isso é o apetite insaciável, mas a gordura a queimar não precisa ser uma idolatria de sempre, nem outras tantas que ainda podem germinar.