Gabriela Moreira: “”Desculpa, quebrei o protocol”: saiba mais sobre o ex-estudante da USP que, aos 37 anos, pode fazer o Flamengo avançar na Libertadores”

Faltava pouco para o fim de um dia que havia sido longo. O embarque no Rio de Janeiro para Fortaleza tivera o coro agressivo de torcedores que foram protestar contra o time. O Ceará, pela terceira rodada do Brasileiro, se desenhava no cenário do dia seguinte como um adversário obrigatório a ser batido. Jantar finalizado, antes da última reunião do dia com a comissão técnica, Maurício Barbieri topa conversar. Encontro com o treinador interino do Flamengo no café do hotel na orla da capital cearense. O empate com o Santa Fé, na Colômbia, na partida anterior, provocava análises sobre o seu trabalho. Retranqueiro. Houve quem murmurasse.

Maurício Barbieri tem 37 anos e quatro filhos. João Gabriel, de 11, Yara, de 8, Nina, de 5 e Tito, de apenas 3 meses. Todos com a mesma mulher, Ana, com quem é casado. Quem aos 26 anos decide ter o primeiro filho e uma década depois já soma quatro não pode ser chamado de retranqueiro. É a primeira constatação da conversa.

“Ele gosta do jogo trabalhado. Gosta de ter uma ideia de jogo bem definida. Posse de bola com ofensividade. Realmente retranca não é o perfil das equipes dele”, analisa Thiago Scuro, seu ex-diretor de futebol no Red Bull Brasil, completando:”No Red Bull ele passou por quase todas as funções no futebol. Foi estagiário, preparador físico, auxiliar e treinador. Isso ajudou ele a ser mais completo. Sem dúvida, ele é mais bem preparado por isso. Além de muito inteligente, é simples ao transmitir o que quer para o time”.

No dia em que conversávamos, Barbieri havia comandado o Flamengo em cinco partidas (três empates e duas vitórias, sendo uma em amistoso). Pergunto o que ele já enxergava como sua cara no grupo rubro-negro. Vejo que o time tem sofrido menos sustos no setor defensivo, digo e questiono o que ele havia mudado para dar esta impressão.

“Acho que o time está mais compacto, com menos espaços para o adversário trabalhar a bola por dentro do campo. Mudei a forma de marcar. O time marcava muito por homem e peço que eles marquem por setor e em todas as disputas que tenha alguém na cobertura”, responde.

Métodos cobrados

As mudanças na marcação eram um passo, mas como fazer a equipe jogar de forma mais consistente, para que os resultados começassem a aparecer? Dias antes, seu colega de profissão e amigo Zé Ricado, já havia me apresentado uma parte da resposta. Planejamento. Uma característica comum a quem tenha passado por clubes-empresas, como o Audax e o Red Bull Brasil, é que a evolução do trabalho é medida e cobrada.

“Você tem bônus no fim do ano que são atrelados a resultados. Como nas empresas. E quando alcançamos ou não alcançamos, você tem de explicar como chegou até ali. O que deu certo e o que não deu, tem de estar no papel. Com todos os passos tomados. Isso ajuda a ter mais consciência do que se faz”, conta Zé, que, mesmo em meio ao turbilhão vivido em São Januário, volta toda a atenção à repórter quando escuta que o assunto é falar sobre o trabalho do seu ex-colega de Audax.

“A gente conversa muito. Ele é um grande amigo. Quando estava montando o time do Vasco me pediu indicação para algumas posições. Indiquei o Thiago Galhardo por eu ter sido o treinador dele no Red Bull. Está dando muito certo… eu só não imaginava que teria de enfrentá-los como treinador”, conta Barbieri, fazendo a ressalva de que quando fez a indicação, ainda não trabalhava no Flamengo.

Fã de jogadas ensaiadas

O planejamento dos treinos do time é feito por ele e demais integrantes da comissão, entre eles o auxiliar Maurício de Souza, conhecido como Mauricinho, técnico da Copinha deste ano com o sub-20. Chegar ao Ninho do Urubu antes da maior parte do grupo e deixar o CT após a maioria têm sido frequente na rotina do treinador. A atividade do dia seguinte à vitória contra o Inter fora marcada para as 15h30. O treinador chegou antes das 10h.

“Depois que os jogadores vão embora, ele costuma ficar até tarde reunido com o Wellington Salles (analista de desempenho) para programar a semana”, relatou um funcionário do clube.

Das conversas com Wellington saem grande parte dos treinamentos, baseados na forma de jogar dos adversários seguintes.

“Ele gosta muito de jogadas ensaiadas. Todo jogo tem algumas que ele pede para fazer e isso é treinado a semana inteira. Ele manda repetir até acertar. Já ganhamos um jogo muito importante, que nos deu o acesso à série A do Carioca em 2013, assim”, conta Léo Inácio, seu ex-atleta no Audax-RJ e atual coordenador das categorias de base do Flamengo.

“Essa questão das jogadas ensaiadas é realmente um ponto que chama a atenção. Ele treina inúmeras vezes e na preleção faz uma espécie de teste com os jogadores perguntando o código de alguma delas”, relata uma pessoa que costuma participar das reuniões pré-jogo.

Ideia de jogo

A conversa com Barbieri seguia os caminhos da sua trajetória até chegar ao Flamengo, há 48 dias. De como ele passou de jogador a estudante de Esporte, na Universidade de São Paulo, até fazer estágio na base do Porto, aos 22 anos, quando completava seus estudos numa universidade portuguesa.

“Muitos falam que eu trabalhei com o Mourinho, mas não foi isso. Eu trabalhei no Porto quando ele era o técnico do profissional. Não tive contato no dia a dia, mas lá eu aprendi muito com as ideias de jogo da equipe. Trabalhei com o José Guilherme, que é uma grande referência pra mim”, disse.

Do estágio, quando o clube foi campeão da Champions League, ele voltou ao Brasil com ideias do que gostaria de fazer quando fosse treinador. Ideia é a palavra-chave do pensamento de José Guilherme, citado por ele na conversa, professor da universidade do Porto – na qual Barbieri complementava seus estudos – e o autor da metodologia de treino que ele procura aplicar em seus trabalhos, a Periodização Tática.

“Nada que ele peça para os jogadores em campo não foi treinado antes”, comenta Scuro, atual diretor-geral do Red Bull Brasil.

Além de Red Bull e Audax, Barbieri também teve uma passagem pelo Guarani como treinador do profissional. Foi a mais curta da sua carreira (6 jogos, quatro empates, uma vitória e uma derrota), que ele explica dessa forma:

“Fiquei realmente muito pouco e não pude fazer muita coisa. Mas falo com os jogadores de lá até hoje”.

Paquetá e torcida

A conversa já chegava ao fim quando, em pé, perguntei sobre Paquetá. Naquele momento, o meia ainda não estava jogando exatamente onde está atualmente, quase como um volante de armação, com extrema liberdade para transitar até a entrada da área:

“Sei que o Paquetá rende bem onde está, no meio pela direita… mas você não acha que ele renderia ainda mais em outras funções?”, pergunto ao treinador que sorri quase deixando escapar uma das mudanças que viriam pela frente:

“Espera que amanhã você terá uma surpresa”, disse.

O relógio já marcava quase meia-noite e estava quase no dia do aniversário do seu filho mais velho. Flamenguista, João Gabriel ganhou 3 gols para comemorar e um futebol jogado com mais ideias.

“Quero dedicar essa vitória a um menino chamado João Gabriel, que faz aniversário hoje”, disse ele ao abrir a coletiva pós- jogo no Castelão, sem revelar que se tratava do próprio filho.

O bolo veio só no dia seguinte. Ao chegar em casa, a trupe Barbieri o esperava para os parabéns. João escolheu o tema da festa, foi rubro-negra, como de costume.

Na partida desta noite, contra o Emelec, o treinador e suas ideias serão testadas novamente. Aos 37 anos, o interino que encontrou o Flamengo na sua frente fará o jogo mais importante de sua carreira até agora.

Na última vez que esteve no Maracanã, no empate com a Ponte Preta, quando mais de 60 mil cantavam à beira do gramado, ele não resistiu e atendeu aos pedidos de foto com a Fla-Mureta, pequena torcida formada por alguns que ainda lembram a velha geral do velho Maraca.

Ao lado dele, um steward que presenciava o momento disse: “Dos técnicos recentes, é o primeiro que eu vejo vindo aqui tirar foto”. O treinador ouviu e pediu desculpas à comunicação do clube, que o perdoou imediatamente:

“Desculpa, quebrei o protocolo”.

O blog conversou com alguns jogadores que foram treinados por ele; veja entrevista com Roger, atualmente no Corinthians:

– O quê, no trabalho do Barbieri, te chamou mais atenção?

Eu não sei se posso usar o termo surpreender, porque a gente esteve junto no Red Bull e desfrutei do conhecimento que ele tem sobre futebol. Do jeito que ele trata os ateltas, o respeito, o nível de treino, de intensidade. É um cara que realmente tá pronto pra viver tudo que tá vivendo no Flamengo. É um cara que se preparou muito pra essa oportunidade.

– Tem sido frequente, em entrevistas com jogadores que trabalharam com ele, ouvir que “a gente compreende o que ele fala”. Pra você foi assim também? É uma característica que te chamou atenção nele?

Ele é um cara muito esclarecido, né? Então, chamou a atenção de todos, chama a atenção. É um cara muito estudado, que tem um conhecimento amplo de futebol. Só que é simples, muito simples. Tudo que passa é de fácil compreensão e, se você realmente abraçar essa situação, com certeza o time, o grupo vai obter sucesso.

– Para quem está de fora, é curioso imaginar como um atleta já com experiência lida com treinadores jovens (e no caso do Barbieri, no Red Bull) em início de carreira. O que ele agregou na sua experiência como jogador?

Acho que foi a primeira experiência que eu tive com um treinador tão jovem. Mas foi um Campeonato Paulista maravilhoso (2015), consegui conquistar três prêmios, muito pelo trabalho dele. Porque sem dúvida ele nos preparou para aquilo. Então, acho que a grande diferença foi uma conversa que tivemos no início da temporada, em que disse a ele que eu viria pra ajudar e que ele era jovem tanto quanto eu, mas em situações opostas, né? Porque um treinador jovem é diferente, mas um atleta já na minha idade (31 na época) já tem mais experiência, então, eu acho que nós tivemos um casamento perfeito no Red Bull, nós entendemos um ao outro. A partir da terceira ou quarta rodada, eu fui capitão dele e fizemos um campeonato sensacional. Ficou um sabor, sem dúvida, de que queremos mais.

– Como você definiria o esquema de jogo preferido por ele? Sabemos que, muitas vezes, o treinador tem de adaptar o esquema ao perfil do time… Mas na sua visão, ele gosta de qual tipo de esquema?

Ele é um cara muito conhecedor. Mas acho que o grande sucesso nosso foi no 4-2-3-1. Nós tínhamos uma linha de quatro, uma normal, dois laterais, dois zagueiros. No meio-campo nós tínhamos o Luan, que tá no Avaí, na 10, muitas vezes tínhamos o Thiago Galhardo, Misael, Igor Sartori e Edmilson e eu como 9. A gente conseguia espelhar muito bem e definir. Foi um esquema que deu muito certo, mas eu não vejo ele jogar assim no Flamengo. Vejo ele jogar num 4-1-4-1 e que está dando muito certo.

– Como ele era no vestiário, no olho no olho com você?

É um cara nota dez, um amigo que eu tenho no futebol. Muito esclarecido, muito educado, diferente. A gente tem um palavreado meio diferente no futebol e ele é um cara que tem um nível acima de educação, enfim, um cara que a sala dele sempre esteve aberta para quem quis, olho no olho. Eu lembro que o time passou uma situação delicada e eu fui à sala dele e disse que queria fazer uma reunião com os atletas e eu como líder, mais velho, fui à frente e foi bem legal porque ele me apoiou muito nessa decisão. Eu lembro disse e depois tivemos uma virada, saímos para uma arrancada muito legal no campeonato. É um cara muito, muito inteligente em todas as áreas, não só futebol. É um cara família, assim como eu. Um cara que aprendi a admirar.

– Você foi artilheiro (2016) com ele, num momento difícil da sua carreira. Algo no trabalho do técnico favoreceu este momento?

Sim, o trabalho dele me favoreceu. Não posso negar que ele montou uma equipe para que eu jogasse. A gente sabe que às vezes não acontece, não dá certo, mas no Red Bull tínhamos uma equipe para que a bola chegasse em mim, para que eu tivesse a bola do jogo, para eu finalizar, né? Ele fez toda a diferença, é claro que a gente trabalhou muito, a bênção de Deus me chegou muito, mas ele definiu um esquema para que me favorecesse, porque o meu momento realmente era maravilhoso e ele entendeu isso rápido. Se não me engano, em três, quatro rodadas eu já havia feito quatro, cinco gols.

Ele entendeu que o momento era meu e ele fez uma equipe para me favorecer. Deu muito certo, fui artilheiro, fui pra seleção do campeonato, fui o craque do interior. Lembro que ele estava na festa comigo e eu disse para ele ‘logo vamos estar entre os grandes, se Deus quiser’, e hoje eu tô muito feliz de ver ele treinando o Flamengo, eu defendendo o Corinthians e a gente com uma relação maravilhosa. Ele tem sempre minha torcida pra que tudo dê certo na vida, no trabalho. O futebol precisa de caras como Maurício Barbieri.

Reprodução: Blog da Gabi Moreira/ ESPN

Fonte: http://colunadoflamengo.com/2018/05/gabriela-moreira-desculpa-quebrei-o-protocol-saiba-mais-sobre-o-ex-estudante-da-usp-que-aos-37-anos-pode-fazer-o-flamengo-avancar-na-libertadores/

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