- Multa de vascaíno
- Valeu um neto
- Principais jornais isentam juiz
- Bronca vascaína
- Adeus valido
Válido ou não? A pergunta que perseguiu o herói do primeiro
tricampeonato carioca do Flamengo, conquista cujo septuagenário está
marcado para o próximo dia 29, poderia ser feita a respeito do rumo
tomado por Agustín Valido em 1937, quando, aos 23 anos, deixou a
Argentina a fim de desbravar o Brasil. Ele não está aqui mais para dar
seu parecer, pois o time dos imortais rubro-negros o contratou em 1998,
porém a inequívoca resposta é que valeu. Valiosa cabeçada na final do
Estadual de 1944 valeu-lhe a eternidade. Vale até hoje o orgulho de uma
família incapaz de calcular o feito do gringo. E o gol? Valeu? Para os
vascaínos, não. De acordo com o juiz Guilherme Gomes, sim. E se não
tivesse valido: os rubro-negros comemorariam do mesmo jeito? Impossível.
Só foi válido por causa de Valido, e o caneco conquistado naquele
domingo será alvo de homenagem durante a partida entre Fla e
Internacional, na próxima quarta-feira – no dia 29, data real dos 70
anos, o time de Luxemburgo pegará o Atlético-MG pela Copa do Brasil, em jogo de
caráter nada festivo.
Ana Valido, uma das duas
filhas do herói argentino, defendeu o papai famoso por diversas vezes
durante o longo bate-papo. Nascida quatro anos depois do triunfo
histórico, usou e abusou da tecnologia para provar a validade do
valoroso gol de Valido.
- Todo mundo queria
contar para mim: “Ah, eu vi o seu pai jogando”. Mas isso um milhão de
vezes. Eu não era nascida nem nada. Papai ficava pau da vida, porque ele
dizia que era mais alto que o cara. Aí cabecearam juntos, o cara caiu e
ele caiu em cima dele. Tenho a foto dele. Ele cabeceou antes de
encostar. Botei no Google e, na última foto, ele não está encostando no
Argemiro. Não tem nada a ver que ele estava empurrando. Ele estava
caindo e empurrou somente na queda. Na hora da cabeçada, não empurrou –
decretou Ana, de 66 anos.
A neta Juliana parece
ter herdado o espírito brincalhão do avô e resolveu botar pimenta na
história. Pessoas que tiveram contato constante com Valido durante os 61
anos vividos pelo craque no Brasil garantem: ele admitia a quem
quisesse que, de fato, empurrou Argemiro. Juliana é uma dessas e, a cada
vez que confirmava esta versão, acabava interrompida pela mãe,
defensora do ídolo, que vociferava: “Mentira!”.
-
Ele jurava de pé junto que não empurrou ninguém, mas gostava de
debochar com isso e dizia: “Quer dizer que encostei? Então encostei
mesmo”. Tenho uma lembrança boa dele provocando os outros com isso. A
gente sempre soube da história, meu próprio avô contava como fez.
Convivi muito com meu avô, eu já era grande quando ele morreu, tinha 21
anos. Era muito gozador, sempre foi um palhaço. Então, já velhinho dizia
que empurrou mesmo, mas só para deixar os outros irritados. Há provas
de que ele não empurrou. Se empurrou, eu não sei, mas o que vale mesmo é
bola na rede – divertiu-se a neta.

Multa de vascaíno

O histórico gol
valeu a Valido o status de intocável dentro dos corredores rubro-negros,
mas também culminou em punição inusitadíssima. Um vascaíno resolveu
descontar o prejuízo de 44 no bolso do ídolo.
-
Uma vez, indo para a Teresópolis, parou no posto de gasolina que havia
ao lado do Rio Sul, abasteceu e pagou com um cheque, assinando seu nome.
Aí passou um guarda e falou que não podia parar ali. Ele (Valido)
falou que estava saindo, esperando o cunhado, alguma coisa assim. O
policial pediu: “Seus documentos”. Leu “Agustín Valido” e perguntou: “O
senhor é o Agustín Valido, do Flamengo? Ele respondeu todo feliz: “Sou” e
pensou: “Ele não vai me multar, né?”. O guarda disse: “Então, você está
multado, porque sou Vasco, não interessa. O gol foi roubado. E multou
mesmo. E ele (Valido) ficou rindo – recordou Ana.
O
saldo do pândego craque, que faria 100 anos em janeiro, era para lá de positivo, e o bônus foi gozado por filhos e netos.
Juliana narra que em certa oportunidade, em maus lençóis na faculdade de
Administração, livrou-se de uma iminente reprovação por ter dado uma
camisa autografada pelo avô ao professor.
- Esse meu professor
era fanático pelo Flamengo e parava as aulas para falar de Valido. Eu
estava enrolada na matéria, e falei “Vô, vamos dar um jeito aí”. Ele foi
no Flamengo, arrumou uma camisa, autografou e me deu. Quando entreguei
ao professor, nem precisei mais fazer prova (risos).
Valeu um neto
O
antológico gol valeu a Valido também um neto que nem conhece.
Guilherme, no início do namoro com Juliana, foi alertado por um primo da
amada de que iniciava história de amor com a integrante de uma família
cujo nome mais famoso era de um grande craque do Flamengo. Foi a senha
para que Guilherme matasse a charada. Após 29 de julho de
2006, quando casou-se com Juliana, incorporou o sobrenome do, a partir de
então, vovô Valido.
- Eu não liguei o nome à
pessoa, mas aí o primo dela disse: "Sabia que sou neto de um ex-jogador
de futebol?" Aí pensei: “Juliana Valido... É o Valido do tricampeonato?”.
Aí pronto, falei: “Vou ter que casar com ela” – disse o apaixonado
Guilherme Valido.
A participação de Valido no
tricampeonato de 1944 ganha ares de dramaticidade, pois jogou com febre
de 39 graus. Além disso, não atuava profissionalmente havia mais de um ano.
A aposentadoria fora forçada pela esposa, porém esta foi interrompida
no fim da competição. Após disputar pelada no campo da Gávea, Valido
teve sua lua de mel interrompida para enfrentar Fluminense (6 a 1) e
Vasco (o jogo do título). Ana, embora ainda não tivesse nascido, detalha
o resgate do argentino.
- Quando casou, minha
mãe pediu para ele parar de jogar. Era ele aparecer na janela para todo
mundo chamar por ele. Dizem que era um inferno. Ele tinha parado e
montado uma gráfica, estava em lua de mel e foram caçá-lo para
colocá-lo para jogar. Diziam: “É um jogo só”. Foram atrás dele, que
estava um bagaço por causa da lua de mel (risos). Ele dizia no deboche:
“Não posso jogar, estou um bagaço. Eu estava liquidado e não aguentava
correr”. O gol foi aos 45 minutos do segundo tempo (aos 41)? Fizeram uma
massagem nele, e ele pensava: “Vou ficar aqui na banheira, que aí tocam
para mim e eu faço o meu”. E ele era goleador mesmo. No finzinho, fez
um gol de cabeça e pronto: ficou para toda a vida.

Valeu
chorar, e lágrimas de alegria foram derramadas por Ana ao recordar uma
das últimas homenagens feitas pelo Flamengo ao pai, em 1995.
-
Papai, já bem velhinho, recebeu homenagem no centenário do Flamengo.
Foi a última homenagem viva. Pediram para ligar o elevador do Jockey.
Viu o Zico e ficou em pé (chora). Foi falar com o Zico, que
ajoelhou no pé dele e beijou a mão dele (chora novamente). E ele que
queria beijar a mão do Zico. Já estava bem velhinho. Ia muito ao
Flamengo, tinha título de benemérito. Aquele parque foi ele quem deu
dinheiro, ajudava o Flamengo... Torcia, cabeceava e chutava com a gente
durante os jogos. Era apaixonado.
Válido é
recorrer a uma história que merecia ter valido por 10 títulos, a um gol
que deveria ter valido mil. Valido, de cabeça e eternamente na cabeça
dos rubro-negros fez valer o esforço de valiosos atletas como Jurandir,
Newton, Quirino, Biguá, Bria, Jaime, Zizinho, Pirilo, Tião e Vevé.
O Globo destaca Fla e sua torcida, queixas vascaínas e aposentadoria de Valido
"Teve um desfecho de gala o campeonato oficial de football da cidade. O match de ontem interessou, inegavelmente, à maioria da população carioca que há uma semana, se preparava para acompanhar, presente no campo da Gávea - que logrou renda "record" - ou atenta às reportagens radiofônicas, o grande clássico Flamengo x Vasco. E venceram os rubro-negros, "o clube mais querido do Brasil", dando margem a que se registrassem em todos os recantos da cidade, cenas de verdadeiro delírio de alegria, de envolta com lágrimas, também essas de satisfação. Cabe ainda assinalar o comportamento disciplinar dos vinte e dois players de ambos os quadros que nada deixou a desejar, a despeito do nervosismo com que todos atuaram. Vemos acima, posando para O GLOBO, alinhados em fila indiana, os vitoriosos que conquistaram para o Flamengo o título de tri-campeão. Nas 14ª e 16ª páginas, amplas reportagem do acontecimento". Com este texto, "O Globo" ilustrou a foto que "rasgava" sua capa do dia 30 de outubro de 1944. Reação que alçou o Flamengo do terceiro ao primeiro posto, após estar a cinco pontos do então líder Vasco, também foi destacada.

A crônica de "O Globo" narrou duelo nervoso, marcado por muitas faltas e excessivo respeito mútuo motivado pelo medo de arriscar.
"O Globo" deu ênfase especial ao lance que mudou o destino do "prélio": no fim do primeiro tempo, Valido, que no fim da etapa complementar se converteria em herói, contundiu o médio Alfredo. O problema provocou a improvisação de Djalma no meio-campo, e Alfredo limitou-se a fazer número pela ponta direita. Ainda de acordo com a crônica, o Flamengo passou a dominar o jogo e acabou premiado aos 41 minutos do segundo tempo, quando Valido "venceu Barchetta (Barqueta) de forma espetacular, justificando cem por cento os esforços do que conseguiram com que reaparecesse na equipe rubro-negra".
principais jornais isentam juiz
"O Globo" exalta também o comportamento do vascaíno, ainda que alguns tenham se deixado "tomar por intenso nervosismo", em campo. Sustentam que o Cruz-Maltino mostrou condições de conquistar o título. O "intenso nervosismo" teve seu ápice justo no gol rubro-negro, no qual o zagueiro Argemiro garante ter servido de apoio para Valido cabecear e inflar a rede do Vasco. Apesar das queixas, "O Globo" isentou o árbitro de culpa, opinião compartilhada pelo jornal "A Manhã", outro de grande circulação na época. Confira na íntegra o relato de "O Globo":
"Uma arbitragem que não podia fazer milagres"
"Voltando de um período de férias, Guilherme Gomes dirigiu a partida. Não se pode afirmar que tenha sido um bom juiz, mas é certo que teve uma arbitragem absolutamente imparcial. Apitou muito e chegou a irritar parte do público. É preciso convir que a sua missão revestia-se de enorme responsabilidade e que poucos seriam os juízes capazes de levar o match até o fim. Apitou muito, sem dúvida, mas salvou o espetáculo e o próprio football carioca. Afinal era demais querer o milagre de uma atuação cem por cento perfeita e todos os bons desportistas devem rejubilar-se pelo que conseguiu Guilherme Gomes no prélio de ontem".

bronca vascaína

Argemiro, marcador de Valido no lance capital, segundo "O Globo", "banhado em lágrimas, gritava e jurava que o goal de Valido fora consignado em condições duvidosas":
- Por Deus (jurando ao afirmar que Valido se apoiou nos seus ombros ao cabecear a pelota). E eu disse ao juiz, por Deus como foi "foul".
Tão irritado quanto Argemiro estava Ondino Viéra, técnico vascaíno à época:
- Aí está o resultado de um ano de sacrifício! Tudo perdido, completamente perdido por causa de um lance discutido. Sorte madrasta, desgraçada sorte, essa!
Do lado rubro-negro, só emoção. O goleiro Jurandyr desmaiou após o jogo, e o atacante Pirillo chegou ao vestiário se contorcendo de dor, carregado em uma cadeira de palha. Jornalistas e o massagista Johnson tentaram acudir o arqueiro flamenguista, mas somente a intervenção do médico Newton Paes Barreto.
adeus de valido

Valido, aposentado em 1943 e convencido por Flavio Costa a atuar nos jogos finais de 1944 após bom desempenho em peladas na Gávea, jogou a partida derradeira com febre. Dado o esforço hercúleo e a participação a contragosto da vontade de seus familiares, anunciou o fim da carreira de jogador ainda no vestiário da Gávea.
- Sou um homem de sorte e não insistirei. Sempre coloquei o Flamengo acima de tudo. Ainda dessa vez estou jogando contra a vontade de minha família. Sai-me bem da jornada, mas não insistirei. Vou encerrar minha carreira desportiva agora, já. E que bela recordação levarei do football, meu amigo, que recordação maravilhosa. Posso desejar mais? - disse e desapareceu.
Flavio Costa, por sua vez, não teve dúvidas ao colocar o título de 1944 no topo de suas quatro conquistas como técnico do clube.
- O que posso dizer a vocês é que esse campeonato foi o mais trabalhoso de todos os que defrontei em minha longa carreira de "coach" e jogador". Devemos a conquista desse título ao esforço de nossos jogadores, à sua conduta sã e ao sacrifício a que se expuseram no auge da campanha. Se o Flamengo não costuma esquecer seus campeões, para os de hoje deve reservar uma gratidão toda especial.