Lançado em 2016, o Centro de Excelência em Performance do Flamengo foi apontado como “milagroso” em 2019, quando o clube enfileirou conquistas e recuperou jogadores em tempo recorde. Mas passou de referência a alvo de questionamentos em menos de um ano. O excesso de lesões em 2020 ligou o alerta e motivou uma reformulação, mas as razões para ela, e os critérios para a escolha de novos profissionais, colocam a figura do médico Márcio Tannure, atual gerente de saúde e alto rendimento, em xeque.

Relatos obtidos pelo GLOBO indicam que a vaidade do chefe do departamento médico tem falado mais alto neste momento de cobrança. E que Tannure também é apontado como responsável por condutas duvidosas que explicam a nova visão do setor dentro e fora do Flamengo.

O meio-campo Thiago Maia é um exemplo. O atleta completou duas semanas sem ter uma definição sobre que procedimento seguir após lesão grave no joelho esquerdo. O trauma provocou uma ruptura dos ligamentos, mais precisamente do canto posterolateral, com indicação cirúrgica. Segundo especialistas, a demora para adotar o procedimento pode favorecer um processo fibrótico que atrapalharia a visualização da cirurgia e obrigaria a reconstruir os ligamentos, em vez de dar pontos nas suas estruturas. O que tornaria o retorno aos treinamentos mais lento.

Desde que teve exames realizados, Thiago Maia trata em três períodos, no Centro de Treinamento e em casa. O atleta chegou a um acordo com o Flamengo para um tratamento conservador, sem cirurgia, mas em seguida o Lille, clube ao qual pertence, resolveu pelo procedimento. Nete domingo, um médico enviado pelo clube da França vem ao Rio para confirmar o diagnóstico de cirurgia. A indefinição tem gerado apreensão sobre a recuperação do atleta, que tem previsão de voltar só em 2021. Tannuer chegou a informar que o atleta seria operado por outro médico, com sua supervisão, mas voltou atrás.

— Qualquer conduta médica a gente necessita da autorização do jogador, que já nos deu, mas também do time dele. É uma lesão complexa. O Lille, com toda razão, gostaria de avaliá-lo. E aí vamos confirmar o diagnóstico e definir os próximos passos. Logística para ir à França ou vir ao Brasil foi difícil — justificou o médico do Flamego, em entrevista coletiva na sexta-feira.

Não repercutiram bem as declarações sobre a queda de qualidade do trabalho da comissão técnica que ganhou tudo ano passado. Tannure apontou apenas motivos externos para os problemas do departamento, e não explicou as razões internas de estar insatisfeito. Nem critérios para as contratações recentes, de profissionais indicados por jogadores (Rafael Winicki, preparador físico) e dirigentes (Diego Paiva, fisioterapeuta de Marcos Braz).

Segundo informações, Tannure desempenha hoje um cargo mais político do que médico. E se mantém atendendo a interesses da direção e de atletas. Tanto que assumiu discurso institucional e entrou em rota de colisão com a CBF, ao dizer que Rodrigo Caio e Pedro voltaram com lesões graves da seleção. Na verdade, Rodrigo foi convocado com dor no joelho e voltou com a mesma dor. No clube, na transição com o preparador físico Rafael Winick, teve problema muscular grave na panturrilha. O erro do novo contratado, não admitido pelo médico, aconteceu durante viagem do time pela Libertadores. Tannure também cedeu ao apelo dos atletas por Winicki, professor particular de Diego, Filipe Luis e Rodrigo Caio.

Na coletiva, o médico ainda apontou os efeitos do surto de Covid-19 no Flamengo como uma das causas do excesso de lesões. Mas não explicou como foi sua atuação no caso. Segundo fontes, a contaminação em massa ocorreu pois o atacante Vitinho não ficou isolado quando apresentou os primeiros sintomas, antes mesmo de viajar ao Equador. Todo o protocolo do clube foi elaborado e implementado por Tannure.

Ascensão e queda de um modelo

Chefe do departamento médico, desde o fim de 2015, quando substituiu José Luis Runco, Tannure ganhou status com a queda no número de lesões nos últimos anos, e, segundo relatos de pessoas com quem trabalha e trabalhou, foi assim que acumulou certa vaidade. Elogiado por ter estruturado o CEP Fla, com contatos no mundo das lutas para trazer equipamentos de ponta, o médico virou exatamente um gerente, cargo que ocupa agora. E teve a competência reconhecida como gestor. Mas ao montar uma equipe de ponta, ainda assim ganhava os créditos praticamente sozinho. Mesmo sem autorização para operar, participa das cirurgias com colegas. Em uma delas, a de Diego Ribas, proibiu o filho de Runco, Guilherme, de operar, em 2017.

A troca de gestão ao fim de 2018 quase abreviou a passagem de Tannure, mas ele foi bancado pelo vice de futebol Marcos Braz, com quem trabalhou em seu começo no Flamengo, em 2005. A nova diretoria deixou claro no início que a filosofia baseada em protocolos científicos dividiria espaço com abordagens mais empíricas, sem tanta ênfase na prevenção de lesões, no rodízio de atletas, etc. A chegada de profissionaias da velha guarda escolhidos pela direção era mais uma prova. Mas o sucesso da comissão portuguesa de Jorge Jesus deu respaldo para a manutenção da ideia. Embora Tannure e sua equipe tentassem manter os procedimentos, eles começaram a ser perdidos.

Entre 2019 e 2020, o Flamengo diminuiu de R$ 7 milhões para a R$ 5 milhões os custos com equipamentos e sofwtare para o futebol, mas manteve o investimento em aparelhos e tecnologia para o CT, na casa dos R$ 2 milhões. No mesmo período, o capital humano sofreu perdas. Daniel Gonçalves, coordenador científico e um dos pilares do CEP embrionário, foi desligado e parou no Palmeiras. Mesmo clube de Fred Manhães, fisioterapeuta que era o outro tripé do projeto, ao lado de Tannure, mas acabou demitido ano passado. Recentemente, Fred foi convidado pelo Flamengo para voltar, mas não aceitou.

A ideia era repor a saída de quatro funcionários demitidos, sendo dois médicos e dois fisioterapeutas. O médico Gustavo Caldeira, por exemplo, já tinha sete anos de clube, e a demissão pegou a todos de surpresa, uma vez que era muito bem avaliado internamente. Como começou a se destacar, a percepção da comissão é que Tannure quis tirar a sombra de perto de si. Na primeira onda de demissões do ano durante a pandemia, o clube ordenou que funcionários mais antigos fossem demitidos. Tannure cumpriu. E desligou Walteriano Souza, com 30 anos de casa, a dois de se aposentar.

Mas foi aliado a grandes profissionais que o CEP ganhou destaque. E Tannure também, lembram funcionários do Flamengo. As conquistas de 2019 camuflaram ainda a saída de Diogo Linhares, preparador físico que foi para o Kashima Reysol, do Japão, e deu lugar a Alexandre Sanz, que já havia trabalhado no Flamengo em 2009. Antes do retorno, o profissional não estava em um clube e atuava com treinamentos funcionais na praia. Com Jorge Jesus, Sanz foi afastado. O clube ficou apenas com Roberto Oliveira. E Tannure acumulou a chefia da preparação física. A fisioterapa estava a cargo de Fabiano Bastos, agora também de saída para o Japão.

O desafio de conter lesões em um calendário de jogos duas vezes por semana por muitos meses se mantém ano após ano. O monitoramento dos níveis de fadiga muscular e de performance dos atletas é baseado na composição corporal, nas ações de alta intensidade nos jogos, assim como em outros marcadores, como o bioquímico e o hematológico. O clube também utiliza a termografia, para verificar as respostas inflamatórias do músculo, além da minutagem e do rodízio dos atletas. Tudo isso com Jesus, com Dome e agora com Rogério Ceni.

Só que com o fim da função de coordenador científico e a saída de outros profissionais que fundaram o CEP, como o psicólogo Alberto Filgueiras, sistematizar a comunicação entre as principais áreas da ciência do futebol – fisiologia, fisioterapia, psicologia e nutrição – ficou mais difícil. As constantes mudanças atrapalharam o fluxo de informações entre a comissão técnica. Hoje, há ruído. E diferentes métodos utilizados com os jogadores. Motivos que ajudam a explicar a proliferação de lesões. E a ascensão e queda de um modelo que tenta se reinventar em busca da excelência.