Almir do CSA: uma história de pai e filho, do futebol e de suas escolhas

Engraçada a forma como a memória funciona. Recordar o que almocei ontem por vezes é um martírio, mas aquele dia vem a mim com riqueza de detalhes tamanha que nem parece ter sido há 15 anos. Entramos no Maracanã bastante cedo, antes mesmo da partida preliminar entre as equipes sub-20 – meu pai encheu-se de precaução porque eu era bem novo, nove ou dez anos. Ali, na boca do corredor que leva à arquibancada, agarrei a mão dele e caminhei a passos curtos, a adrenalina numa escalada alucinante, o olhar preocupado em apreciar e registrar cada mínimo detalhe que fosse enquanto a acústica fazia a transição do espaço confinado para o gigantesco interior do palco que eu visitava pela primeira vez. Repeti essa caminhada outras tantas vezes desde então e senti o mesmo arrepio invariavelmente em todas: é inevitável.

De brinde, ainda me agraciaram com um dos jogos mais emocionantes que vi na vida. Jean, que na minha opinião puxa a longa fila de jogadores que jamais dispuseram do reconhecimento que lhes é merecido, abriu o placar para o Flamengo. Sob a batuta de Romário, o Fluminense não só virou como encaçapou logo três bolas no fundo da rede que me fizeram afundar na cadeira da arquibancada, incrédulo. Estaria eu fadado a testemunhar uma humilhação na minha estreia? Mas Felipe logo diminuiu, e o intrépido Roger Guerreiro salvou minha noite com mais dois gols. Era 2004, o Campeonato Carioca ainda tinha seu valor, e os rubro-negros faziam o estádio tremer bradando alguma coisa sobre levantar poeira, a minha entre as milhares de vozes.

– Eu também já fiz gol aí no Maracanã, sabia?

Em meio ao êxtase, lembro que voltei a mim com esse comentário do meu pai, despretensioso, como se o assunto fosse o calor senegalês que normalmente acomete o Rio de Janeiro, ou o preço do cachorro-quente, este mais caro à medida que a salsicha diminui. Veja bem, me acostumei cedo com o fato de meu pai ser ex-jogador, sempre soube que ele saiu do Fluminense para dar sequência à carreira em clubes nordestinos principalmente. Mas parou por aí. Descobrir que o velho fez gol no Maracanã, justo ali onde eu estava, era algo tão próximo das imagens fantasiadas na minha cabeça que me causou estranheza. Mas como ele não se alongou na prosa, tampouco houve indagações da minha parte. Ao menos, não naquele dia.

+ Confira todas as notícias sobre o CSA

Acontece que o Seu Almir é insuportavelmente raso nos assuntos que se propõe a abordar, e fazê-lo aprofundar-se em algo pode se tornar bastante irritante. De modo que eu, na verdade, sabia sobre ele o mesmo que você depois de uma rápida pesquisa na internet. Para provar que tenho pai ex-jogador, o caminho sempre foi o mesmo desde que descobri no YouTube o vídeo dos gols de Flamengo 2 x 1 Ferroviário, pelo Brasileiro de 1980, no Maracanã. O gol do Ferrinho marcado por ele, os cabelos enrolados inconfundíveis caindo sobre o ombro e a frieza para driblar o goleiro Raul antes de empurrar de canhota para o fundo das redes. Os do Flamengo, por um rapaz chamado Zico.

Mas aí o CSA de Marcelo Cabo subiu para a Primeira Divisão em 2019, o que não ocorria ao clube há mais de 30 anos. A passagem do meu pai por Alagoas teve decerto algum destaque, disso eu sabia pelos raros dias em que ele acordou mais tagarela. Era o pretexto perfeito. E minha missão de desencavar essa história valeu a pena logo na primeira ligação, quando eu, coberto de cautela e desapegado da possibilidade de que alguém pudesse se lembrar do Almir à primeira menção ao nome, fui interrompido no telefone por Lauthernay Perdigão, presidente do Museu de Esportes de Maceió.

– O Almir Vieira? Cabelão, barba grande. Sim, é claro que lembro dele. Fez muito gol aqui no CSA – animou-se o velhinho lá com seus 80 anos.

– Pois é – respondi, disfarçando a emoção. – Sou filho dele…

O artilheiro "ruim de roda"

Ainda hoje, caminhando pelos corredores da Liga Petropolitana de Desportos, é possível encontrar imagens e registros dos feitos do Alemão – a primeira alcunha de alguém que viria a ter outras tantas. Porque os gols citados por Seu Lauthernay começaram a surgir cedo, espalhados pelas inúmeras quadras de Petrópolis, na região serrana do Rio. Até um dia em que o jovem Almir, então aos 20 anos, no apagar das luzes de 1975, fez chover diante dos olhares atentos de José Lemos numa partida da liga local.

+ Veja a tabela do Campeonato Brasileiro 2019

Zé, então vice-presidente de futebol do Fluminense, convidou o menino às Laranjeiras com a condição de que ele seria tão somente observado. Não houve promessas. Mas a verdade é que encontrar espaço no time que seria bicampeão carioca e que tinha Rivellino como regente era tarefa das mais ingratas. Ele treinou, treinou, mas nunca recebeu a oportunidade de jogar. Foi transferido de graça para o CSA no ano seguinte, fato do qual o Tricolor se arrependeria não muito mais tarde.

Almir, devidamente indicado pela seta, treinando ao lado de Rivellino no Fluminense de 1975 — Foto: Arquivo Pessoal

Almir fez dos gramados alagoanos suas quadras de Petrópolis e passou a enfileirar gols a partir do momento em que pôs os pés na terra em que nasceu Zagallo. Foram 17 no estadual de 1976, o primeiro disputado pelo novo clube. No Brasileiro, mais dois – o que, diante da campanha pífia naquele ano, o deixou no topo da artilharia da equipe na competição.

Para fazer jus ao perfil do adolescente que, de repente, começa a ganhar muito dinheiro, também houve uma pitada de imprudência. Como quando ele, desprovido da habilitação, pegou o carro novinho em folha, que acabara de comprar, e tacou num poste. Não antes de levar consigo outros três automóveis.

– Comprei um Chevette lá em Alagoas, peguei e fui para a boate. Não bebia, nem nada. Mas eu estava muito empolgado, tão empolgado que acabei dando uma porrada em três carros e no poste – lembrou meu pai, que hoje se diverte com a história. – Saiu até no jornal: "É bom de bola, mas ruim de roda".

Matéria da revista Placar de outubro de 1976 — Foto: Reprodução / Placar

Matéria da revista Placar de outubro de 1976 — Foto: Reprodução / Placar

Hoje longe do futebol, os dois joelhos quase que rangendo após a retirada dos meniscos e a CNH devidamente em mãos, meu pai ganha a vida como motorista de ônibus.

O "não" ao Flamengo de um apaixonado pelo Botafogo

É hora de abrir um enorme parêntese para dizer que meu pai era um botafoguense ferrenho. Digo "era" porque o entusiasmo dele pelo Glorioso, e pelo futebol como um todo, regrediu com o passar dos anos. Mas o jogador Almir, que viu o time ser campeão brasileiro em 68, vice em 72 e semifinalista da Libertadores em 73, era fascinado.

Pois bem. Em 1977, Almir defendeu as cores do Santa Cruz por pouco tempo, porém o suficiente para arrebatar o título do Campeonato Pernambucano e fazer uns golzinhos importantes. Contra o Grêmio em pleno Olímpico, por exemplo; e contra o Atlético-MG, este numa vitória contundente no Arruda. Os que ele marcou pelo CSA infelizmente não existem no arquivo – e aqui fica até um alerta para todos os clubes do país: preservem sua história! Portanto, reuni em vídeo todos os que pude encontrar da época de Santinha e Ferroviário. Com narração de Léo Batista, que é pra acabar com o cabra que vos escreve.

Confira alguns gols de Almir por Santa Cruz e Ferroviário

Já de volta ao CSA no final de 1977, ele marcou mais seis vezes no Brasileirão, novamente mais do que qualquer companheiro de equipe na competição. Com oito gols no total, Almir ocupa o posto de quarto maior artilheiro do clube alagoano na história da Série A do Brasileiro. Está atrás apenas de Ênio Oliveira, com 12; e da dupla Zé Carlos e Rômel, ambos com 11.

Evidente que um atacante fazedor de gols despertaria a atenção de clubes maiores. Ele se recorda de um específico: o Flamengo, que o abordou em meados de 79, período em que o Rubro-Negro aparava as arestas do elenco que viria a ser campeão de tudo nos anos seguintes. O convite, dada a conjuntura, era para ser o Nunes daquele time. Mas como "estava bem" no CSA, e seu sonho na verdade era jogar pelo Botafogo, um dos maiores rivais, Almir disse "não".

– Foi depois de um jogo, um dirigente me parou no vestiário me perguntando se eu queria ir para o Flamengo. Eu disse que ia pensar nisso, me deu o telefone, aquelas coisas. Mas aí eu falei que não queria ir, não. Porque eu estava bem no CSA, eu falei: "Quero é ficar por aqui mesmo" – relembra Almir, que logo em seguida se justifica:

"Não era vergonha, nem nada. Só que naquela época eu era fanático pelo Botafogo. Eu queria mesmo era jogar pelo Botafogo, mas não tive a oportunidade."

Almir, do CSA, com a costumeira cabeleira e barba volumosas — Foto: Arquivo Pessoal / Lauthernay Perdigão

Essa é a parte da história sustentada apenas pelas palavras do meu pai. Talvez pelo caráter informal da "proposta", não há registros nos jornais. E por conta do que fez o time comandado por Zico, simplesmente os anos mais vitoriosos do clube mais popular do país, é infinitamente mais plausível se lembrar daquele esquadrão pelo que ele foi, não pelo que ele poderia ter sido. A única pista veio de um antigo dirigente do Flamengo que, embora a nada lhe remeta o nome Almir, recorda, sim, que a diretoria procurou outro atacante antes de acertar com Nunes, que este era a segunda opção. É a ela que me agarro – diz o filho, não o jornalista.

Engraçado é que o velho, mesmo tantos anos depois, entre um ponto de ônibus e outro, não dá o braço a torcer nem sequer por um instante.

– Eu não me arrependo, não. Eu gostava de jogar no CSA. Se eu tivesse ido para o Flamengo, talvez eu chegasse até à seleção brasileira. Mas eu queria mesmo era ficar pelo Nordeste – encerra o assunto, teimoso como ele só.

Depois disso, Almir passou por Ferroviário (duas vezes), CRB e Nacional do Amazonas antes de pôr um fim na carreira no Treze em decorrência das seguidas cirurgias nos joelhos.

Conto toda essa história porque, em ano de CSA de volta à elite do futebol brasileiro, é provável que Almir cruze o caminho da crônica esportiva em algum momento. Se calhar de Patrick Fabiano meter nove gols e ultrapassá-lo na artilharia histórica do clube, por exemplo. Ou vai que alguém marca duas vezes num duelo contra o Fortaleza, como o Almir em 79. De qualquer modo, os amigos da imprensa podem se sentir à vontade para referir-se a ele como Almir Explosão, apelido dos tempos de Maceió em que os zagueiros eram facilmente deixados para trás; Almir Beleza, este impulsionado pelos olhos verdes do coroa; ou Diabo Louro, o meu preferido, que eu acredito que tenha algo a ver com o fato de infernizar as defesas adversárias.

Também sou jornalista. Só que, nesse caso, é com o coração transbordando de orgulho que prefiro chamá-lo apenas de pai.

Meu pai, que há tempos economiza na cabeleira, mas que ainda preserva o bigode; e eu. — Foto: Arquivo Pessoal

*Colaboraram Juan Andrade, que arrancou do meu pai o que eu jamais consegui; e Victor Mélo, o homem dos contatos em Maceió.

Tébaro Schmidt é repórter de Futebol Internacional do GloboEsporte.com.

Fonte: https://globoesporte.globo.com/rj/serra-lagos-norte/futebol/noticia/almir-do-csa-uma-historia-de-pai-e-filho-do-futebol-e-de-suas-escolhas.ghtml

Share this content: