Não se pode surpreender com as mudanças iniciadas por Domènec Torrent no Flamengo. Os dirigentes sabiam, quando o escolheram para substituir Jorge Jesus, que o time manteria a vocação ofensiva, mas passaria por uma transformação radical na forma de jogar. Causa temor, porém, a velocidade com que o catalão comanda essa metamorfose, ignorando as virtudes do elenco multicampeão e acumulando prejuízo significativo no Brasileiro — um preço que o Flamengo não precisaria, nem deveria pagar.

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Domènec já apresentara seu repertório particular no segundo tempo contra o Atlético-MG ao inverter a pirâmide e terminar o jogo com cinco atacantes. Ali, porém, era possível argumentar que se tratava de um esforço excepcional para superar outro estrategista, Jorge Sampaoli. Não funcionou: os jogadores apenas são capazes de executar o que treinam, e Dome não teve esse tempo. Por que, então, ir além na partida seguinte?

O livro “Guardiola Confidencial”, sobre o primeiro ano em que Pep e Dome trabalharam juntos no Bayern de Munique, traz uma passagem relevante. Nela, o então auxiliar conta que aconselhava Guardiola a não transmitir muitos conceitos de uma vez, porque os jogadores estavam “aprendendo um idioma novo”. Dome pareceu manter a coerência na chegada ao Brasil, quando reiterou que implementaria seu modelo aos poucos em respeito ao trabalho anterior. Mentiu ou mudou de ideia?

Fato é que suas intervenções transformaram o melhor time das Américas em um agrupamento irreconhecível contra o Atlético-GO. Alguns desastres eram fáceis de antever. Quando atuava pelo São Paulo, Rodrigo Caio se desentendeu com o técnico Diego Aguirre após ser escalado repetidas vezes na lateral direita. Pois foi ali que Dome o colocou contra o Goianiense, no lugar de Rafinha. A parceria entre Gabigol e Bruno Henrique também foi desfeita — logo ela. BH foi brilhante em 2019 porque, ao atuar pelo centro, combinava impressionante velocidade, inteligência na movimentação e precisão nas finalizações. Dome decidiu que a busca por amplitude compensaria isolá-lo na esquerda. Também achou que Arrascaeta deveria dar lugar a Vitinho, um jogador menos vertical e que, dois anos após chegar ao Flamengo, ainda não se firmou.

Vagner Mancini, estreante à frente de um time que não jogava há cinco meses, percebeu logo que havia muitas fragilidades a explorar. Fez três, poderia ter feito mais. A linha defensiva calibrada por Jesus, que raramente deixava bolas descobertas e tinha vocação para colocar os rivais em impedimento, passou a correr para trás. Isso nunca é um bom sinal.

É evidente que Doménec — e nenhum outro treinador — é capaz de comandar um elenco sob ideias que não são as suas. Mas o Flamengo de 2019 tinha uma particularidade significativa, além dos resultados: os jogadores gostavam de atuar como Jorge Jesus os orientava. E a torcida aprovou esse estilo. Dome terá que convencer os jogadores de que é possível ser tanto ou até mais exuberante sob nova filosofia. Mas o primeiro passo para receber essa legitimação é não desprezar, mesmo que na melhor das intenções, o que esses atletas construíram. Eles formam o segundo maior time da história do Flamengo.

Há ainda aspectos intangíveis, e é impossível precisar o quanto eles foram agravados pela revolução tática. Mas o descontentamento de Everton Ribeiro ao ser substituído e a irritação de Diego Alves no lance do cartão vermelho são sinais claros da frustração de um time que não se reconhece mais.

Doménec fez sua defesa, disse que o time está longe do ritmo ideal e pediu tempo. Mas veio de Filipe Luís a declaração mais instigante: “Não é só a mudança do técnico. São várias coisas que estão acontecendo, e nosso time saiu do trilho, não está com aquela ideia tão clara como estávamos antes”.

Está na hora de o grupo sentar no divã e colocar para fora o que são essas “várias coisas que estão acontecendo”. Guardiola, mestre de Domènec, diz que campeonatos de pontos corridos são vencidos nas últimas oito rodadas e perdidos nas oito primeiras. O Flamengo já perdeu duas.