Gabigol deu um pique no início do aquecimento e foi de um lado a outro do Maracanã pedindo apoio. Teve resposta imediata da torcida do Flamengo, que entrou no clima da virada desde que começou a entrar no estádio. David Luiz veio em seguida e mostrou que o grupo parecia estar contagiado por um novo espírito. As vaias direcionadas para o técnico Paulo Sousa na escalação do time no telão pareciam um recado de que os rubro-negros estariam com o time os 90 minutos para reverter a situação diante do Fluminense. Eles estiveram, é verdade. Mas a equipe sucumbiu à própria soberba.
Quem viu o que o Fluminense fez com o Flamengo ao longo de 180 minutos se questiona se o título inapelável é mais por mérito tricolor ou por descompromisso da equipe rubro-negra em relação às ideias que o treinador tenta implementar. Desmobilizado, sem intensidade, desobediente taticamente. E também sem o mesmo talento, que veio em lampejo na jogada de Arrascaeta para o gol de Gabigol. Minutos depois, o camisa nove, ídolo da Nação, que sustenta a fama pelos dois gols na final da Libertadores de três anos atrás, estava discutindo e gesticulando com o técnico Paulo Sousa. O motivo: andava em campo e não obebecia à ordem de fechar o meio-campo.
O comportamento não foi exatamente novidade para Gabigol. E nem é um caso isolado. Talvez por isso a reformulação pretendida no elenco seja muito complicada. Bruno Henrique também ignorou as ordens do Míster para fechar o lado esquerdo. Irreconhecível do ponto de vista técnico, parecia também querer passar um recado de que no Flamengo quem dita os rumos são os principais jogadores.
A verdade é que, na bola, o Fluminense foi melhor. Controlou o jogo, colocou o Flamengo por vezes na roda. Tudo isso devido não apenas ao talento, mas sobretudo por ser fiel a ideia de Abel Braga. Uma equipe aguerrida, mas que sabia o que fazer. Tocava a bola em transição, se movimentava diante de uma defesa perdida, e a pressionava de maneira inteligente. Assim, restou ao Flamengo um jogo direto. Protagonizado por David Luiz e seus incontáveis lançamentos. Hugo também esticava demais o jogo, orientação do treinador, para que o ataque conseguisse em poucos toques surpreender. Não funcionou na maioria das vezes.
Com alas sem profundidade, tanto Rodinei como Filipe Luís sofreram muito defensivamente. No gol do Fluminense, o lateral direito leva uma bola nas costas, e Filipe não consegue fechar por dentro para acompanhar Cano. No lance do pênalti, que Hugo defendeu, Filipe coloca a mão na bola. Ele talvez seja, do alto de seus 36 anos, quem sofra mais com a desorganização do Flamengo. Não apenas por não conseguiu acompanhar fisicamente, já que tenta cumprir as funções táticas. Mas também por ter que se desdobrar por outros que nem tentam. Este papel também é desempenhado por João Gomes, uma fagulha de dedicação do time atual, mas sozinho e perdido sem a ajuda dos colegas.
E aí é que está o ponto. A tal falta de química apontada não melhora com a troca de peças. Cada jogador que entra acaba com incumbência em relação a qual não está habituado. Em dado momento, Paulo Sousa tinha Bruno Henrique de ala, Ribeiro como segundo homem, Arrascaeta por trás do ataque, e na frente Gabi e Pedro. A dupla já cansou de dar sinais que não tem a sintonia desejada para essa formação. Já sem ter o que fazer, Paulo Sousa liberou David Luiz para virar ponta esquerda no fim. No desespero, o Flamengo virou um time que levantaba bolas na área a esmo, sem qualquer organização.
Nesta terça-feira, o time estreia na Libertadores em meio a um processo de reformulação gradual promovido pela nova comissão técnica, que depois de dois meses vê o trabalho andar para trás. O tempo promete ser escasso para que as novas ideias ganhem corpo a ponto de gerarem uma evolução, ainda mais que os adversários agora serão mais difíceis. Paulo Sousa precisará decidir se insiste no processo, e o Flamengo se vai lhe dar respaldo. Ou se todas as forças entraram em cena para mais uma vez romper um trabalho pelo caminho e levar o elenco a um estilo de jogo mais confortável, dos idos de 2019.
Foi assim com Domènec Torrent e com Rogério Ceni. Ano passado, o trabalho de Renato Gaúcho se baseou em deixar os jogadores do Flamengo confortáveis para desempenhar as funções que mais gostavam. Em dado momento, o time também caiu de produção. Ou seja, entra técnico e sai técnico, desde Jorge Jesus, e o Flamengo não consegue mais ter uma identidade consolidada.