Em tempos normais, haveria muitas razões para viver o Flamengo x Palmeiras de domingo de uma forma que o futebol desta era pandêmica nos roubou: antecipar duelos, disputas táticas, comparar jogadores e estilos. Ao decidir não abrir mão de nada, o jogo fez de cada partida um produto de consumo rápido, um “futebol express”, descartável. Não se curte, apenas se lida com a overdose.

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E mesmo em tempos de exceção, um país governado com mínimo senso de humanidade e zelo por sua gente, não transformaria as decisões sobre a continuidade ou a suspensão de atividades numa novela mórbida. Fizemos da discussão sobre lockdown assunto muito mais de políticos, lobistas e juízes do que de médicos e cientistas. Judicializamos o distanciamento social.

Pelos piores motivos, a menos de 72 horas do clássico marcado para Brasília, ninguém era capaz de afirmar se haveria jogo. É dizer o óbvio que numa capital federal com UTIs praticamente lotadas e num país com 4 mil mortes diárias o futebol deveria estar parado. Insensibilidade à parte, é surreal ver que o desgoverno diante da tragédia levou decisões básicas sobre o funcionamento do país — contexto em que o futebol é o menos importante — para os tribunais.

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Fossem outros tempos, este seria um jogo especial. Em 2019, horas após ganharem a Libertadores, os jogadores do Flamengo foram vistos cantando que “o Palmeiras não tem Mundial”. Logo se tornaria muito clara a atenção com que torcedores dos dois clubes seguem os movimentos de um lado e de outro. É o sintoma da nova conjuntura do futebol brasileiro numa era de concentração de riquezas, aumento das disparidades e criação de uma elite mais restrita: enquanto disputas locais perdem status, entre os mais ricos surgem as novas rivalidades, pautadas não mais por questões regionais, mas por ambições nacionais ou continentais.

Um Flamengo x Palmeiras, se e quando houver, reunirá dois integrantes desta nova elite, os dois últimos campeões sul-americanos e donos das maiores receitas do país. E num início de temporada em que jogos de baixa exigência técnica povoam o calendário, seria natural ver no clássico uma régua mais realista para medir os times. Em especial pelo choque das ideias que hoje separam os rivais.

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Em suas duas aparições desta temporada o Flamengo impressionou pela voracidade ofensiva, por jogar campo rival adentro e chegar à área com até seis homens. Mas o quanto a fragilidade dos pequenos do Rio deixou de testar sua capacidade de minimizar os riscos defensivos, inerentes ao seu modelo de jogo?

Não haveria rival melhor para desfazer a dúvida. Na quarta-feira, o Palmeiras reafirmou na Argentina sua capacidade de chegar rapidamente à área adversária, especialmente contra times que buscam a posse de bola e adiantam a defesa. O gol de Rony retrata o que talvez seja o time de melhor contragolpe do Brasil.

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Rogério Ceni fará alguma concessão para se adaptar? Os volantes do Flamengo jogarão tão adiantados quanto no Estadual? E como reagirá Diego, que sofreu em jogos mais físicos no último Brasileiro?

As perguntas são fascinantes, mas vivemos tempo em que o mais sensato seria esperar mais um pouco pelas respostas. Por ora, há uma só certeza: a decisão sobre o jogo e sobre a vida dos brasileiros terá muito pouco de ciência, e muito de política.